sábado, 20 de fevereiro de 2016

Capela de Santo Antonio do Piracicaba, uma visita histórica


Capela do Santo Antonio do Piracicaca, e à direita
entrada para o Cemitério.
Capela de Santo Antonio do Piracicaba lugar em que os nossos antepassados foram batizados, se casaram e ao lado da Capela encontraram seu último lugar de descanso, como o nosso mais antigo ancestral, Joao José de Lima e Silva lá sepultado em 1 de janeiro de 1875. Nas nossas estatísticas foram realizados 306 batismos de parentes e afilhados e 18 descansam neste pedaço de chão ao lado , abandonado as ervas e picões. Essa capela tem história, muita história...


Estrada Real, Caminho Velho
A visita

Muito antes de nossos antepassados se radicarem na região de Piracicaba, hoje Bairro da Cidade de Baependi, Minas Gerais, a capelinha ja escrevia sua história. Um documento inédito  publicado em 2012, denominado "Visitas Pastorais", elucidou a vida e a administração das igrejas e paróquias de Minas e é sem dúvida o maior  e mais importante conjunto de textos de natureza estatística. Um rico relato feito pelo Dom Frei da Santíssima Trindade (1762-1835), entre anos de 1821 a 1825, percorrendo os caminhos da Estrada Real.

Nos fins de julho de 1824, em sua 4a visita, Dom Frei visita a Capela de Santo Antonio do Piracicaba, cuja abrangência pertenciam "500 almas". No Censu da época só se considerava a população livre e sendo assim, os escravos não eram considerados... "cidadãos", que passaram somente a serem contatos após o senso de 1872.

Padres com chapéus nas cabeças e o escandaloso batismo em gamelas 

Dom Frei relatou não somente o estado de conservação das igrejas, mas também os problemas da organização administrativa, comportamento político e moral de deviam ser observados pelos párocos e suas ovelhas. O rol das queixas e observações era longo: desorganização administrativa dos cartórios eclesiásticos e livros de assentamento em geral, templos  em ruínas ou inacabados, e a ignorância  da doutrina, em grande parte praticada pelo próprio clero, matrimônios  ilícitos, ruína de costumes, além dos desentendimentos entre vários clérigos. 

Nas paróquias percorridas, fazia observações e recomendações  que tinham quase o mesmo sentido: o da observância e cumprimento dos preceitos católicos, nem sempre praticados, nem pelos párocos, nem pelos seus fiéis.

Em sua visita, Dom Frei chegou a  Baependi no dia 01 de agosto de 1825 e não  gostou do comportamento de seus fiéis e logo proibiu os sacerdotes do uso de "roupas profanas  e a celebração de sacramentos sem vestes próprias":

"... e muito mais ao da Sagrada Eucaristia, as mulheres que se atreverem a aparecer com vestidos indecentes, impróprios de matronas cristãs, e que só podem competir a gentias brutas, ou vis e ridículas comediantes, com tivemos a desgraça  de observar e com maior vigor nos transportamos à mais exempar e pública repreensão. Calem-se as mulheres do templo e nele entrem com as cabeças   cobertas".

E continuava:

"Estranhamos muito aos pais-de-família a relaxação em que se têm entranhado, consentindo tão abominável excesso de traje em suas mulheres e filhas criadas no seio do cristianismo, e lhes encarregamos muito as consciências e responsabilidade na presença do Supremo Pastor dos Pastores, entanto que gememos na oração a ver se alcançamos a reforma de tão graves abusos."

E em Pouso Alto se exaltou com a notícia que sacerdotes acompanhavam os defuntos "sem vestes talares e com chapéus nas cabeças!!!" isto é, vestimentas que usam os sacerdotes em cerimonias religiosas, dando-lhes representatividade. Escandaloso achou de que na Capela de Santa Luzia, na freguesia de São  Gonçalo, por falta de pia batismal de pedra, os batismos eram realizados em gamelas... 

E repetia incansavelmente em: "E com igual ardor ordenamos aos pais-de-família sejam cuidadosos em que seus escravos venham aos templos ouvir missa nos domingos e dias santos, ao menos uma vez a cada mes aprender a doutrina do seu reverendo pároco." 

Nem tudo estava ruim. A freguesia de Aiuruoca, em sua perspectiva, era "exemplar". Mas acredito que 50 anos mais tarde a mesma freguesia não iria receber boas notas: O pároco local, José Eduardo Honorato da Silveira (1826-1885), que batizou Sabina Maria da Conceição, mãe de Gervásia Maria da Conceição, a vó Gervásia, virou político local, candidatando-se para vários períodos legislativos na Freguesia de Aiuruoca. Ele não era exceção quanto aos sacerdotes exercerem atividades completamente diferentes que cuidar de suas ovelhas. Muitos eram possuidores de terras e exerciam atividade agrícola, bem como de mineração, como relata o Frei, sobre a Freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Congonhas, em Sabará:

"O pároco existente é o padre Antônio Fernandes Taveira e os sacerdotes que ajudam são o padre, mestre de gramática latina, Joaquim Machado Pinheiro, de 63 anos, o padre Joaquim Barbosa Ferreira, de 73 anos, o padre Joaquim Albino Pereira, de 34 anos, o padre Antônio de Freitas, de 50 anos, na sua fazenda de engenho e de grande mineração."

A Capela de Piracicaba

Falemos primeiro da cidade de Baependi a qual ela era ligada. A Freguesia de Baependi, que recebeu o alvará régio em 2 de agosto de 1752, ficava a 55 léguas de Mariana, portanto a 264 km, do bispado situado na cidade hoje Mariana a qual era filiada e 64 léguas, 307 km da Corte do Rio de Janeiro e continha 7.560 "almas", segundo o mapa de 1819. Toda a Freguesia continha 1.896 fogos, termo usado como fogões, metonímia de casas, lares.
A capela de Santo Antonio de Piracicaba foi erigida "por provisão  de 22 de fevereiro de 1770", assim consta no livro "Instituições  Canônicas  do Bispado de Mariana", do qual Baependi pertencia.

Até o ano de 1838, pertenciam à Baependi as capelas filiais de Santo Antonio de Piracicaba, hoje situada no município de Baependi, São   José do Favacho, pertencendo hoje ao município de Cruzília, e Conceição do Rio Verde, município do mesmo nome. Todas as tres capelas mencionadas, segundo o Dom Frei, estavam em bom estado de conservação e ornados com toalhas de linho, uma exigência dele para as capelas, cujas toalhas de algodão em outra ocasião, foram por ordem dele retiradas. 

Porta lateral da Capela que da acesso
direto ao Cemitério  Santo Antonio do Piracicaba

Mas voltemos para a nossa Capela... Assim foi mencionada a Capela de Santo Antonio do Piracicaba no documento original:

Ermida de Santo Antonio do Piracicaba.

Confessionário em cor
roxa, cor cidata duas
vezes no texto.
É esta capela dedicada a Santo Antonio com sua capela-mor forrada por cima, com o presbitério também assoalhado de tábuas, com seu arco cruzeiro perfeito de madeira e grades divisórias, com seu altar de comprimento de 9 palmos e 3 de largura, fora a banqueta, tudo em branco, ornado com frontais, um de branco e encarnado, outro de roxo e verde, com três degraus para o trono, onde esta a imagem de Santo Antônio, padroeiro, de 3 palmos de alto e perfeita, com um altar colateral onde estão duas imagens: uma de Santana, outra da Conceição, e em ambos estes altares as imagens de Cristo Crucificado, e são perfeitas e as alfaias são as seguintes: duas pedras de ara sãs e forradas, uma casula com os seus pertences de damasco e outra de cambraia roxa e verde, duas alvas novas com seus amictos e cordões, seis toalhas de altar de linho com renda e mais duas para a Comunhão, um cálice com patena de prata, dourado por dentro, um missal e um ritual já velhos, porém ainda em bom uso, um caixão na sacristia para guardar as alfaias e ornamentos da igreja. A pia batismal é de madeira, está na esquerda, à entrada da igreja, e os vasos dos santos óleos são de chumbo, e está toda a igreja para campar, assim como o seu adro por cercar.

A Capelinha do Piracicaba recebeu "boas notas" de conservação e estava "nos conformes" se comparadas com outras capelas das Minas Gerais, como o caso da Paróquia da cidade vizinha, Pouso Alto:

"A igreja matriz acha-se muito arruinada, sem forro e com 3 altares de madeira e muito pobres, o que não corresponde à riqueza dos fazendeiros, e no mes de março do ano de 1825 caiu a torre com um temporal  e obra de tres a quadro bracas de uma parede e duas bracas de frontispicio de baixo a acima, e mostra a continuar a destruição ."


A nossa visita


Quase 200 anos depois, mais precisamente  187 anos, no ano 2012, visitamos a Capela do Piracicaba. O Frei da Santíssima Trindade iria se exaltar se visse a situação da capelinha nos nossos dias...
Se fossemos dar o nosso "parecer", diríamos que nada mais encontramos que uma capela em reformas. Tudo que era antigo no interior da capela, que lembraria o templo visto por Dom Frei em 1825, como por exemplo a escada que levava ao coro, estava deposta do lado de fora. O altar era novo e horroroso construído de alvenaria, e o Santo Antonio padroeiro, ausente. Segundo nos informou a senhora que tinha a chave da capela, o pároco levou-o para ser restaurado. Havia um substituto sobre a mesa... Não era o autentico...

Um oratório, provavelmente tão  antigo como a capelinha, estava depositado  pelo lado de fora da capela (foto). Quem ordenou as "obras" não  tinha exato sentido de memória e nem de restauração. O confessionário estava no repartimento atras da capela e era só desolação. Na minha documentação  preferi deixar  a penumbra falar que fotografar o altar de alvenaria. O passado se foi.




E o cemitério...

os mortos 
estão na Via Lacta.
esquecidos do apocalipse
esquecidos dos oráculos

o tempo não  pode regurgilá-los,
não  ha juízo nas bússulas
nem Estrada Real*
Vista do Cemitério ao  fundo a Capela
Santo Antonio do Piracicaba

Fontes: Visitas Pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade (1821-1825)
Fotos: Solange Ayres
Poesia: Eustaquio Gorgonne
A visita: Feita por Fatima Ayres, Rosaria Aires e Solange Ayres em 2012.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Janice Drumnond, a vizinha de frente e suas memórias

Janice Drummond
Nasci aí, na primeira curva da rua Quintino Bocaiuva, 160, hoje Av. Magalhaes Pinto, (vejam no Google). Mais tarde mudei para o centro de Caxambu, vizinha da nata social, os Almeida, Dona Ruth e dr. Acássio e o cheiro permanente de pasteis de nata. Quando cheirava era só descer duas casas e tinha pastel de nata na certa. A Zaida na esquina, trazia roupas lindas do Rio pra vender na loja e aproveitava pra copiar as de tricô e tecer iguaizinhas pra mim. E a casa onde nasci virou a casa da vó Orminda e da dona Ritinha. 
Praga pega
Aos 5 anos, a construção da nossa pequena casa por meu pai, me levou de volta ao poeirão da rua Quintino Bocaiuva n° 96 (façam uma visita atreva do google à casa em Caxambu) e ao grupo dos mesmos vizinhos, numa época em que vizinho era sinônimo de família, de amigo intimo com o qual se podia contar. A rua poeirenta me ensinou que rogar praga, pega. Brincando de pegador, como sempre eu e a Beth, às vezes a Tereza da Ivone e Alcides, o pó não me deixou ver uma bicicleta e fui atropelada. Não machuquei, mas lembro que pensei: esse miserável há de cair da mesma forma que me derrubou. Dito e feito, a bicicleta bateu numa pedra, em frente a casa onde nasci e o condutor se estatelou. Também não machucou, mas foi a primeira vez que entendi que as palavras tem vida e que podem moldar a vida.
Vó Juruvá
Quase em frente de casa vivia a vó Juruvá. Velha, bem velha, de nome Gervásia, cujo "erre" eu ainda nem conseguia pronunciar, acabou batizada por mim com este nome, que quando eu dizia, todo mundo sabia de quem eu falava. Juruvá pra mim significava ser velho, ter muitas rugas e ter o mesmo tanto de rugas que de poder. Era brava, não gostava que a criançada perturbasse, que atrapalhasse as tarefas domesticas, mas com ar sempre disciplinar, fazia muita vista grossa pra aprontação da meninada.
Era uma casa amarela (veja no google) com uma pequena varanda, onde a gente não tinha carta branca pra circular no espaço interno, nem mesmo pra chamar no potão, mas nem precisava. Tinha um quintal enorme que varava o quarteirão. Entrava-se pela rua de cima e saia-se pela rua de baixo, paralela, e ai nos fundos, a casa das amigas quase irmãs, eleitas irmãs, já que eu não as tinha: A Beth (de idéias mirabolantes de resultantes sempre discutíveis, sempre contando com meu apoio, mesmo sendo mais nova. Verdadeiro ídolo de maturidade pra quem mal das fraldas havia saído) e sua irmã Solange, mais nova que eu, pequena demais pra sofrer as conseqüências, mas participante ativa das “artes”.
O portão de entrada da casa,  era seguido por uma cerca alta de bambu, provavelmente feita com maestria pelo seu Joaquim Roque. Este, remanescente ainda da escravatura,  passava o dia plantar, a cortar, igualar as ripas de taquara e estaquear a cerca perfeita, enquanto distribuía historias de época que nos enchiam de medo e questionamentos. Eram contos de fantasmas que assombravam fazendas, de entidades folclóricas escondidas em capoeiras, e devo agradecer a ele o estimulo a imaginação e as memórias vivas que me fazem relatar com propriedade tudo o que vivemos.
Seguindo a cerca, aí sim, encontrávamos o portão certo onde chamar. Havia este acordo tácito, nunca redigido ou discutido mas que todos conheciam e respeitavam. Não adiantava bater na porta da frente, esta nunca se abria. Mas gritar vó Juruvá deste portão lateral, era verdadeiro “abre-te Sésamo”. Lá vinha ela, encarquilhada, escorando no seu bastão, pra mim a visão de uma mão no cajado e outra apoiando as costas, a voz seca a perguntar: "O que voce quer". Atrás dela a visão do paraíso. O quintal de fora a fora, com as frutas, na dependência da estação. No outono os cítricos, as laranjas de todas as qualidades espalhadas, podendo colher a vontade e algumas proibições que me soavam como a maça do paraíso. A laranja Bahia não, nem pensar em chegar perto... Mas vez por outra eram colhidas e a gente recebia delas em casa, como presente à minha mãe. A laranja lima, essa nem pensar... Era a que ficava mais perto da varanda de trás, perto da cozinha, a única que ela mesma gostava. Mas era tanta laranja que só mesmo a proibição nos fazia rodear vez por outra as proibidas, ideia da Beth pra atormentar a pobre. No verão vinham as jabuticabas. Uns quatro a cinco pés carregados, pra chupar em volta do galho, limpar o galho pra poder sentar nele e continuar a festa sentado pra não se cansar. Dois pés de jabuticaba rainha, enormes, do tamanho dos olhos da gente e também proibidas. O jeito era ficar namorando, medindo crescimento, esperando a liberação. Quando este dia chegava, a festa era total.
Laranjas de umbigo
Nunca me esqueci da baita surra que tomei, dia em que aprendi o significado da palavra “cantada”. Minha mãe precisando falar com a avó Juruva e eu de intrometida aproveitando a deixa pra praticar oportunismo, dizendo eu também vou, quero ver a vó, eu vou junto, até ser levada.  Era questão de atravessar a rua em passo obliquo. De pé no portão correto, o do quintal, mamãe chamando a vó Juruva e eu na expectativa do portão se abrir pra “cantar” umas laranjas Bahia, proibidas pra nós, mas podendo ser, talvez, obtidas pelo respaldo da presença da mãe. Ledo engano. Minha mãe desfiando o que foi la dizer e eu atrás das costas dela só cobiçando as laranjas. Eu toda voltada pro pé de laranja Bahia logo ali no meio do terreiro.  Ousei a primeira vez: vó, to com vontade de chupar as laranjas de umbigo. E ela: "Ainda não estão no ponto, estão azedas". Um pouco de espera e la vou eu de novo: vó não tem problema estarem azedas, é pra fazer laranjada. E ela: "Quando estiverem prontas te dou". Mais espera. Vó, me dá só uma... E ela: "Não, vocês tem todas as outras pra chupar". Minha mãe vermelha de vergonha e raiva pedindo pra não insistir. E eu, sem noção: vó, uma só, com cara de quem nunca viu uma laranja na vida, tipo eu nunca chupei uma laranja destas e vou morrer se não me derem, vou morrer com a boca cheia de formiga. E a vó, já sem graça, cedeu e disse:  você pode apanhar 4 (um bambu bifurcado deixava as danadas ao alcance). Fiquei radiante e já ia entrando portão adentro e fui suspensa pela orelha.  Voltei pra casa sem as laranjas, tomei uma surra e ate hoje ouço a mamãe dizendo:  "A gente não fica cantando ninguém pra ganhar nada". E assim a lição ficou bem aprendida. Deixa as laranjas pra la. 
Por sua vez...
Preferível colher marmelo na casa do Luiz eletricista, que o Douglas ajudava a apanhar. Não tem gosto de nada o tal do marmelo tirado do pé, mas pelo menos se entende de onde sai a tal da vara de marmelo, famosa para as crianças da época, considerada o tipo de surra das mais doídas. Alias, segundo o Luiz, marmelo é ruim, mas o abacate , “por sua vez” (termo que ele enfiava em todas as falas) era gostoso e na casa dele tinha, logo na divisa de terreno dele com o nosso, servindo ás duas casas com as frutas que o Fabeco em pessoa colhia pra nos dar. E do lado de ca da cerca, na minha casa, o abacateiro tinha um galho frondoso, dando pra horta, onde o Joaquim Roque fez uma plantação de milho, separada do jardim. Ele amarrou no abacateiro um balanço de corda interminável, que levava a criançada da varanda da casa do Luiz e passava a cerca entre a horta e jardim na minha casa. Verdadeira viagem pela vizinhança em gangorra. La até a varanda do Luiz, onde a Conceição ajudava a costurar as roupas da bonecas, invadia a plantação de milho e atingia um ponto acima das margaridas do jardim passando por cima da cerca. A gente ia e voltava como se não houvesse divisa, a gangorra vencendo facilmente as cercas e ninguém se incomodava. Os adultos, independente de parentesco, vigiavam, zelavam e disciplinavam.
Eu e a Beth, aproveitávamos. Minha mãe sempre ocupada e fora, (já que Arminda não desviava o olho da gente, era dona de casa e estava por perto o tempo todo evitando traquinagem. Solange sempre na barra da saia dela). Descíamos o guarda roupa da minha mãe, casacos, sapatos de salto e assim paramentadas íamos pro balanço imaginando sabe-se la o que, talvez viagens a Paris.
Melhor que Paris

Quintal da vó Gervásia, com Elizabeth e Solange Ayres, 1965
Mas o quintal da vó Juruva era o mundo, muito melhor que Paris. Quebrando a direita no meio do quintal, rumávamos pra casa da Arminda, (foto) casa das netas legitimas, a Beth e a Solange. O pai delas bravo, José Ayres, filho da vó Juruvá. Mas quem sabia o que era legítimo? Era todo mundo neto. E eu nunca pensei que não fosse. Curiosamente, a mesma cerca de bambus do seu Joaquim rodeava a casa delas. Coincidentemente, a porta da frente dava pra rua de baixo e a gente nunca entrava por la, sempre pelo portão lateral que dava na varanda dos fundos. Ai sim, na beira da cerca muitas dálias, a entrada super receptiva. E em frente a porta principal, ao invés de jardim uma plantação de milho. E a gente vigiando o milho, olhando se o cabelo dele já estava vermelho,  porque sabia que ia ter milho cozido quando pronto, ia ter curau e pamonha e a gente ia ajudar a debulhar os que ficavam duros pra dar pras galinhas, ia fazer monte de coisas com os sabugos, bonecos, carrinhos, cavalinhos de sabugo e alguns gravetos, mas o mais importante: aguardar a colheita pra detonar os pés secos brincando de escolinha. Ali reproduzíamos a sala de aula, com os alunos competentes e incompetentes, cada qual um pé de milho seco com nome, os mesmos nomes dos colegas de classe da Beth. E coitados dos considerados incompetentes, vítimas das reguadas disciplinares, no nosso sistema de ensino. A Beth era sempre a professora e eu e Solange os alunos. Solange meio “café com leite“ na brincadeira,  mas atuando como era de se esperar, sentadinha obedecendo a Beth.... e ai da gente se não obedecia em poucos dias da repetição da brincadeira, não tinha um milho seco de pé. Ficava fácil pro seu Joaquim roçar.
Arlindo, o charreteiro, Geraldo careta, Catuia e outras figuras

No fundo do quintal (frente da casa da Beth) outro portão dando na rua de baixo, de frente pra uma casa urbana sim, mas com ar de fazenda, com paiol, curral, vacas e cavalos. O Arlindo charreteiro, vizinho que ocupava um quartinho na casa do seu Virgilio, o da esquerda da vó Juruva, tratava ai o cavalo da charrete e ai a gente via como banhar e escovar um cavalo, como paramentá-lo para o oficio e prepará-lo pra carregar turistas na porta do parque, função menos nobre do que a de  dar carona pra gente chegar a escola, pra não ter que fazer a caminhada no inverno, todo embrulhado em cachecol, sofrendo com os 6 graus de temperatura, a neblina e a geada que cobriam os gramados pelo caminho.

As Mudinhas, foto Nia de Souza
Arlindo sentado no estribo, eu refestelada folgada no banco, o toque toque da ferradura no paralepipedo das ruas, só na insistência pra que me entregasse os arreios, porque alem da carona, divertido mesmo era controlar o cavalo. As vezes ele permitia, outras vezes não. A volta sempre animada, correr a distancia enorme do muro do Crac, com medo do Geraldo careta, coitado, sofria de bócio, e as caretas banguelas eram assustadoras mesmo sendo apenas sorrisos. Com sorte, não trombava com Catuia que era o terror da criançada, com sorte ganhava-se balas no Anízio e no Zé Caetano, e com mais sorte ainda, as Mudinhas apareceriam na parte da tarde pra uma seção esquadrão da moda. O ócio da gente, oficina do capeta, e as mudinhas nossas bonecas vivas. Miúdas, mudas, enfezadas (uma mais que a outra), sempre com uma varinha na mão pra fazer correr a criançada impertinente, mas com a Beth pareciam hipnotizadas. Pegávamos roupas velhas, bolsas, sapatos, rouge, pó de arroz e la iam as mudinhas super fashion com nosso trato. E o povo perguntava... Quem fez isso com as mudinhas? Elas cada dia com um tipo de decoração, era só passar pela nossa mão.
Brincando de roda com vó Ritinha

Infância rica e criativa. Se quisesse ver lindas pinturas, e até brinquedos inventados, era só andar mais um pouquinho, passar o portão da vó Juruva e bater na casa da Zezé Petterle.  O barranquinho em frente da casa era apoio pra gente subir em bicicleta. Ainda guarda cicatrizes no joelho. Se quisesse aprender crochê, tricô, bordado, era só ir pra próxima casa. Tinha ali a vó Orminda que ensinava de tudo e ainda de brinde, dava pra brincar com a vó Ritinha que, centenária e esclerosada, adorava brincar de roda e de boneca. Pra gente, esclerose não era doença, vó Ritinha era lucro, mais uma pra brincadeira. Se quiséssemos ver gente pintando, desenhando e tocando acordeon, era só rumar ao campo do Crac, na frente a casa da Ivone e suas prendadas filhas. Perigo não tinha, cumpadre Lazinho, gordo e cheio de varizes tinha a alfaiataria logo ao lado e dava noticia de tudo, já que vivia sentado ai na porta. Não achasse ninguém, tinha o Marruco filho do Lazinho, sempre com o cordão escorrendo do nariz, mas bom de brincadeira, mais tarde virou marceneiro. Do lado dele a casa dos parentes do padre, esta intocável, mas servia pra bater palmas, sair correndo e esconder pra ver as pessoas misteriosas que quase não se apresentavam em publico. 
As divorciadas

Descendo a Quintino bocaiúva, tinha a casa do Luiz Carlos, hoje pediatra,  mas na época menino minguado, cheio de irmãs e irmãos. Não eram de brincar muito, mas era a única casa no começo da década de 60 que tinha televisão. Era ruim, só funcionava as vezes, mas era tudo o que a gente sabia de modernidade. Em frente do Luiz carlos, a casa da Americana, mulher emancipada, sozinha, separada do marido, motivo de falação da mulherada da cidade, cabelos ruivos tingidos, maquiada, dona do próprio nariz, local meio que interditado a filhas de mães bem casadas, cujo divórcio seria impensável na época. 
Eram duas divorciadas na cidade toda, contadas dedo: A americana, e a Mariazinha ex mulher do Walace, esta sim bem justificada, culpa do marido a separação: bebida...
E mesmo assim apenas  digerida pelas mulheres, jamais aceita, ainda bem que vivia do outro lado da cidade, em cima do posto Texaco do ex.  Assim não oferecia muito risco a convivência. Chiquerrima, mentalidade dos EUA, viajava e trazia roupas americanas lindas, casacos de pele até. Estes eram cobiçados pra se enfrentar o footing em frente ao cinema, programa de final de semana dos casais. Eu diria meio footing já que os ricos iam ate a metade e voltavam e os pobres faziam a outra metade, só que do outro lado da praça, em frente a radio

As mulheres toleravam Mariazinha pela vaidade, mas ficava o estigma: divorciada, vivendo em pecado frente a Igreja Católica, coisa muito séria pra uma época que até passar em frente a igreja protestante era heresia. Por sorte a Americana vanguardista era vizinha e... Fornecedora de fotonovelas, coisa tão proibida quanto revistinha de sacanagem, já que estimulava a libido, mesmo que fossem só historias de amor. A Beth era freguesa absoluta, mas eu a guardiã. Ai dela se Arminda descobrisse! Eu sabia ler desde os 4 anos, mas o interessante ali nem era ler e sim ver as fotos... Foto de beijo, ai que pecado. Mas sábado era hora de confessar e ficava tudo resolvido. Era confessar ou não tinha comunhão no domingo. 
Os "anjinhos" do mes de maio
Coroação no mes de maio. Janice Drummond colocando a palma.

E era preciso comungar porque todo ano tem mês de maio e criança comportada, em maio, virava anjo, verdadeira competição de quem tinha a veste mais bonita, quem tinha a asa mais possante e em especial... Quem seria a festeira? Disso dependia a fartura do cartucho, motivo maior da coroação. Era também o festeiro quem escolhia a função de honra, por palma, por coroa, jogar flores do cestinho ou participar do quadro vivo. Ser anjo na fila era de pouca importância, mas pouco também  nos importava a hierarquia,  já que o cartucho de doces, no final, era igual pra todo mundo. Um frio danado, e a gente de anjo por cima e pijama por baixo, dali da igreja, pra cama direto. Se a festeira era a Maria boleira, a criançada já sabia: o cartucho seria dos bons. E dependendo do festeiro, eram balas amarradinhas, 4 a 5 só. Então nem valia o sacrifício, mas a gente ia, com medo do próximo festeiro não chamar. 

E tinha que fazer bonito porque a Lourdes Silva estava sempre observando, pra escolher quem ia participar de teatro, de concurso de rainha. Eita concurso difícil, a gente tendo que correr a cidade pra vender voto, já sabendo que seria no máximo princesa. A Dayse Marques, era dona de hotel e só os parentes já compravam votos suficientes. Não tinha hipocrisia, a gente sabia que a Dalvinha Marques, filha da Dayse, sempre ia ganhar,mas nem ligava porque ser princesa sempre rendia um perfume Avon com cartão da Lourdes Silva. Tenho o cartão ate hoje e a Lourdes Silva já se foi... 

Sempre fiquei em quarto lugar. Tinha a rainha, a vice rainha e, só me contaram depois que eram só 4 princesas, portanto eu sempre em ultimo lugar. Votos vendidos, iam D Almerinda diretora da escola, com mamãe e Valderez suas auxiliares para a biblioteca (moveis todos coloniais belíssimos) para a apuração. Até contarem o ultimo voto, era permitido ainda comprar votos e injetar dinheiro na campanha. Não era justo com os participantes, mas cumpria a motivação: a renda pra cantina da escola.
Guardei na memória uma conversa entre minha mãe e a Almerinda na hora da apuração. Mamãe falava a ela que tinha acabado de receber e se entregasse o salário eu seria a rainha, mas que ela não podia fazer isso, mas que estava dividida e de coração partido. Fez bem a mamãe em não entregar seu salário à causa, já que para mim não fazia a menor diferença. No concurso o que interessava era a andação por todo canto da cidade pra venda de voto e uma vez cumprida a missão, a cabeça já estava na nova festa e o papel a ser representado ai: Dama renascentista a dançar minueto, escolher o par pra quadrilha,(os meninos lindos, mas o meu escolhido era sempre o Vitinho,(foto) irmão da Marisa dona da loja de esquina em frente ao posto de saúde, não me pergunte porque). Dividir com a Monique Magalhães os papeis de irmãs más e deixar o de gata borralheira pra a menina  Ana Maria, da família Caminha, que era menor e tinha cara de boazinha.

Vitinho à esquerda e Janice Drummond na quadrilha
Fazendo sabão de cinza
Aventura boa era ir a chácara Santa Terezinha, local lindo com capela e até a Santa em tamanho natural. Totalmente inexpressiva na paisagem depois que construíram o trevo, a chácara era uma viagem a roça, a menos de 1 km de casa, com goiaba a vontade pra comer do pé. Às vezes o peso era grande quando alguma mãe resolvia fazer doce. Era nessa temporada que os tachos no terreiro da vó Juruvá comiam lenha. O doce explodindo e respingando e a criançada em volta esperando pra comer quente a raspa. Diferente de quando o tacho fervia o sabão de cinza. Não podia ficar perto, levava soda. Vó Juruva corria com a gente. Mas uma vez pronto e resfriado um lençol enorme era estendido no chão e em cada ponta uma criança, aprendendo a enrolar sabão. Sá Maria com a grande pá na mexeção e agente esperando a enrolação. Não era tarefa, era pura diversão.
Quisesse mais aventura, era so seguir o poeirão da rua em direção a Baependi. Chegava-se numa pontezinha onde corria o o resto do Bengo. Lindo no parque, bonitinho nos fundos da vó Juruvá e neste ponto já puro esgoto, o que em nada reduzia o encantamento.

O Matadouro, o outro lado da cidade

O Matadouro Municipal de Caxambu
Atravessando a ponte chegava-se ao Matadouro (foto) e à ultima escola da jurisdição. Que pena daqueles alunos, gente já do núcleo menos abastado, era o começo do bairro Santa Rita, que na época nem sonhava em existir. A escola limpinha, muitos cartazes de alimentos nas paredes da cantina. Acho que ai comecei a pensar em igualdade de classes, coisa que mais tarde me levou a assistente social. Tínhamos funcionários, empregados de todo tipo, mas eram mesmo que agregados, vivam com as famílias, casavam e criavam junto a nós seus filhos, e uma babá não era apenas uma serviçal, era substituta de mãe. Não havia essa divisão empregado patrão. Lembro de cada uma que tive e com elas ainda convivo. Minha mãe inspetora de ensino, dizia a diretora desta escola que abolisse a musica na merenda porque não condizia com a realidade. A letra da musica falava de pão com queijo, manteiga e leite, merenda gostosa que a todos faz bem. E minha mãe reclamando que aquelas crianças só víamos itens da letra da musica em foto. E era verdade.
Aos domingos ir à missa, depois ir ao parque andar de barco com Dona Elza Gallo. Levar o copinho dobrável e a garrafinha pra trazer água na volta. Levar o limão e um pouquinho de açúcar, pra ver a limonada espumar na água gasosa. Era chic ter a própria garrafinha, toda elaborada em palha e com alcinha, mas necessária não era, porque tínhamos um aguadero. Ele passava, recolhia o garrafão e depois trazia cheio. Era água gasosa pra semana toda. Geladeira não tinha, muito menos coca cola. Mas tinha o velho do burrinho, montado com uma sapateira de cada lado, transportando as garrafinhas de garapa. Isso sim era festa, melhor só quando ia para a fábrica de doces, goiabada na caixinha de madeira, balas de doce de leite, na Mariazinha, na rua João pinheiro. Aí, entre o goiabal, vivi um tremor de terra, pra entender direito o que significa um terremoto.
 O segredo no muro

Emocionante era o plantão das 14 hs. Horário em que passava o padeirinho, de bicicleta, com o cesto enorme a frente, fazendo as entregas. De pão ninguém queria saber, mas era bonitinho o moço e a Beth tinha por ele uma apaixonite e eu de cupincha, fazia que tava brincando com a Beth, aguardava o principe dela passar, entregava e trazia os bilhetinhos. Acho que vem daí a minha fama de cupido. (Um desses bilhetinhos foi colocado entre os tijolos da frente da casa quando esta foi reformada e até hoje esta lá, esta debaixo das pedras de Sao Thomé)*
Veio o golpe de 64, a gente ouvia os adultos contando de um grande cerco das tropas em Jacareí. O que a gente escutava assemelhava a guerra, ficávamos esperando saber das baixas, das explosões e bombas... Mas a única notícia que veio foi de um pé quebrado nas tropas, na cidade de Jacareí. As notícias vinham pela rádio, todo mundo ouvindo o locutor, um negro grandão e analfabeto, irmão de uma das minhas babás, que entrecortava as notícias com publicidade. Aprendi aí a conjugar o verbo adaptar. O locutor gritava, compre os azulejos tal, os que melhor “dapitam” em sua parede... E minha mãe torcia o nariz.
Vó "Juruva", Gervásia, com suas netas, Angela Araujo,
Elizabeth Ayres e sua nora Armindo Maria Ayres
Tempo, tempo, tempo...

Era uma vida de ir vivendo o tempo de cada coisa, tempo de ir a quermesse, tempo de visitar o Asilo, tempo de ir a Capela Santa Isabel, tempo de subir o Morro que nem Cristo tinha. Mas dava pra ver que seria imponente, as partes estavam chegando do Rio de Janeiro, a cabeça guardada num quartinho da Ação Católica. O Morro não tinha nada além da linda vista, mas a gente via muita emoção, parava pra rezar na cruz de Suzana, historia mais macabra que as do seu Joaquim.
Muito a fazer, figos pra roubar, dono já avisado que seria roubado, mas a distancia o protegia, a Chácara das Rosas que a gente invadia ficava longe, na estrada do Caxambu Velho. Dava trabalho, era difícil e demorado fugir até lá,  e tinha muita fruta mais perto.
À toa que a gente nunca ficava. Se nada tivesse a fazer, ficávamos aguardando que um carro de boi passasse, em que direção. Se fosse de casa ao centro, subíamos e descíamos no Bosque, já pra lá da Estação. Entravamos no portão de saída do Parque, atravessávamos o Parque todo e saiamos pela portaria principal. Depois, muita perna até chegar em casa. Se fosse para o outro lado era chance de ir ao Matadouro e comer umas goiabas na chácara Santa Terezinha, goiaba era o motivo, mas rezar pra Santa na capelinha a justificativa.
Se algum adulto tinha algum serviço, dava pra ir com ele ao campo de aviação, lá era fartura o leite de cabra. Não tinha avião, mas o cuidador ordenhava a cabra como ninguém.
Vida boa, debaixo dos olho azuis de Sá Maria e do cajado da vó Juruvá, a gente solto no mundo, que aquele era o mundo da gente, um mundo de milhares de universos, todos felizes

* Nota minha

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Álbum de família: Gervásia com Gervásia

Assim foi a cena em um dia frio de maio de 1967, em Caxambu. Gervásia toma a bisneta Gervásia nos braços, hoje Williamson, filha de Edson Aires  Rodrigues e Edilma Nilda Cunha. 

Para recordar, a casa é na antiga Rua Magalhães Pinto, 113 em Caxambu. Á direita tinha uma poltrona, onde minha vó costumava sentar nas manhãs  frias de inverno para "esquentar sol". No alto a roseira bem cuidada pelo tio Silvio, que floria lindas rosas amarelas.


Foto: Edilma Nilda Cunha, 1967



domingo, 7 de fevereiro de 2016

Ruim mais vai, os difícieis caminhos de ferro do sertão mineiro

A primeira Estação Ferroviária de Caxambu
Em outros tempos as máquinas de ferro
Cruzavam seus chifres e queimavam os cascos
Na agulha grossa dos dormentes. 
As caldeiras ferviam nas locomotivas
E o vapor tecia sonhos de guerra
No peito dos soldados.
As cidades ferroviárias estavam no apogeu.
Levavam bois nas classes noturnas,
Esparramavam óleo no joelho dos vagões,
E faziam o ofício de mulheres-cortesãs ,
Fiando suéteres para a História Industrial.
Havia cabelos esvoaçantes, náuseas,
E na dobra do morro o olhar da lua
Comia a cauda agitadas dos trens.
Havia o pasmo das crianças e moças 
Perante a violência  das invenções inglesas
Nas gargantas úmidas de Minas.
Hoje, o silêncio   desceu sobre os trilhos
 E todos foram escondidos num casaco de capim*.

E lá vamos nós de trem pelos caminhos de ferro das Minas Gerais. Aqui num texto para lá de interessante escrito pelo do historiador e arqueólogo Paulo Paranhos, contando a história dos primórdios das estradas de ferro que cortaram um dia a nossa Minas Gerais. Vocês estão convidados a ler. Tomem os seus lugares, de preferencia à janela, mesmo aqueles que não compraram o bilhete da passagem, hoje é de graça. Boa viagem!

Os difíceis caminhos de ferro do sertão mineiro, por Paulo Paranhos

Desde o descobrimento das Águas Virtuosas de Caxambu, em 1814, até o final da década de 1880, o viajante que ali pretendia chegar tinha apenas uma opção: a estrada de terra, que trazia um grande desconforto, considerando não só a estreiteza do seu traçado bem como a dificuldade de se transportar em épocas de chuvas; para tanto, deveria ir de trem até o atual distrito de Engenheiro Passos (antiga estação de Boa Vista), ainda na província do Rio de Janeiro, e ali alugar cavalos ou uma carroça para subir a serra da Mantiqueira que, diga-se de passagem, no seu ponto mais elevado, alcança a altitude de 1.660m, na divisa do Rio de Janeiro com Minas Gerais.
O coronel Fulgêncio de Castro (1), em 1873, deu-nos um panorama do que se descortinava àquele que pretendia encetar a viagem:


Partindo da estação central da Estrada de Ferro de D. Pedro II no trem das 6 horas da manhã, o viajante chega à da Boa Vista (outrora Major Corrêa) a 1 hora e 50 minutos da tarde. No hotel da Boa Vista dá-se-lhe refeição, custando o almoço 1$500 e o jantar 2$000 e importando para os criados ou fâmulos o 1° em 1$000 e o 2° em 1$5000. Quem pernoitar nessa hospedaria paga mais 1$000. O viajante ao chegar a Boa Vista, se dispuser sem demora da precisa condução, pode ir pernoitar no “Palmital” a 2 léguas (13 quilômetros e 200 metros) despendendo 1$000 por pessoa, 500 réis por criado e 1$000 pela cama. Os animais têm pasto gratuito. Deixando este hotel às 5 horas da manhã pode o viajante ir almoçar no “Engenho da Serra” a 2 léguas (13 quilômetros e 200 metros). Neste hotel, onde a cozinha é excelente, os preços são iguais aos do precedente, e há as mesmas acomodações para os viajantes e seus animais. Nesta parte da Serra do Picu o frio é intenso e até certo ponto incômodo quando cai. Continuando a viagem, depois do conveniente repouso, e passando pelo arraial de S. José do Picu (2), onde há três pequenos hotéis, o principal dos quais é o Midões, e pelo de Capivari, pode o viajante pernoitar no hotel Rendez-vous des Voyageurs a 1⁄2 légua (3 quilômetros e 300 metros) de Capivari, ou a 4 léguas (26 quilômetros e 400 metros) do Engenho da Serra. Saindo deste lugar às 5 horas da manhã subsequente, e passando pelo importante arraial de Pouso Alto, onde há um bom hotel, e pela povoação do Sengó, o viajante almoçará no pequeno mas bem asseado e bem servido hotel do Alto da Boa Vista a 3 1/4 léguas (21 quilômetros e 450 metros) do ponto de partida, e continuando na jornada 1 hora depois do almoço, chegará a Caxambu, com 2 3⁄4 léguas (18 quilômetros e 150 metros) de caminho, às 4 ou às 5 horas da tarde. 


O coronel Fulgêncio de Castro, após fazer o traçado da viagem pela estrada de terra então existente, também mostra os seus conhecimentos geográficos, anotando para o viajante o que se lhe apresentaria em termos de topografia e faz um interessante comentário sobre a administração daquele caminho para as águas minerais do sul de Minas, senão vejamos:

"A estrada desde a Boa Vista até o alto do Picu, não obstante a extensa e íngreme subida da Serra, presta fácil trânsito, graças ao cuidado de sua conservação pela administração provincial do Rio de Janeiro. Mas do Registro do Picu em diante não estará muito longe da verdade quem afirmar que a cada passo nessa descida abrupta e de cerca de 2 léguas (13 quilômetros e 200 metros) encontra o viajante verdadeiros precipícios na estação das chuvas. Segundo informações de pessoas fidedignas e até empregados fiscais da província de Minas Gerais, desde 1866 não tem esta estrada recebido o mais insignificante reparo, embora transitem por ali diariamente dezenas de viajantes e muitas cen- tenas de animais de toda a espécie. O completo abandono desta estrada utilíssima não pode, de certo, ser atribuído à deficiência de fundos nos cofres provinciais de Minas, porquanto consta de documentos oficiais que no quinquênio decorrido de 1° de julho de 1867 a 30 de junho de 1872 e nos três primeiros meses (julho a setembro) do exercício de 1872 a 1873 a importância das taxas arrecadadoras na Recebedoria do Picu (3) atingiu a importância de 624.019$729, sendo muito superior a 100:000$000, a média de cada um dos mencionados anos. Desde a povoação denominada João Pinto na raiz da Serra do Picu (território mineiro) a estrada geral, quase plana, atravessando apenas alguns morros de pequena elevação, oferece fácil, cômodo e até agradável trânsito na es- tação seca, mas na época das chuvas a falta quase total de pontes e pontilhões sobre numerosos ribeirões e córregos que atravessam, torna o trânsito muito difícil senão perigoso.” 

A partir da década de 1880, a estrada de ferro seria uma alternativa mais viável, econômica e, por incrível que pareça, dada a precariedade das composições, mais confortável para os viajantes que demandavam às estâncias hidrominerais do sul das Minas Gerais. 

Os primórdios da estrada de ferro 


Estrada de Ferro D. Pedro II, Linha Central, Estação Barra do Pirahy
A Estrada de Ferro D. Pedro II (4) que ia do Rio de Janeiro até Cruzeiro seria uma nova alternativa para os viajantes que pretendiam beneficiar-se das propriedades curativas das águas minerais de Caxambu. Nesta última estação, faziam baldeação com a Estrada de Ferro Minas & Rio, que chegara ao povoado de Soledade de Minas em 14 de junho de 1884. 

Sem dúvida, o trem em Caxambu seria um grande acontecimento, pois, antes desse evento, mesmo estando a estação de Soledade relativamente próxima ao povoado das Águas Virtuosas, as pessoas tinham que percorrer um longo caminho, em cavalos ou carroças que faziam a partir daquela estação, seguindo por uma estrada ruim que, quando chovia, praticamente impossibilitava o trânsito ou atrasava em muitas horas a sua chegada. 

O Dr. Henrique Monat, médico que para ali se deslocara com a finalidade de estudar as propriedades das águas minerais, anotou em sua obra intitulada Caxambu que quando as pessoas chegavam eram ridicularizadas pelos habitantes do povoado, pois, pela distância que percorriam e pela péssima estrada, vinham cobertas de poeira, suando muito e o apelido de “urso” foi muito popular na época. 

Voltemos um pouco atrás, quando tudo começou, no ano de 1881, mais precisamente no dia 25 de outubro, ocasião em que a Lei provincial no 2.844 autorizava o governo de Minas Gerais a contratar com a Companhia Estrada de Ferro do Rio Verde (5) a abertura de um ramal para as águas de Caxambu, com privilégio de cinquenta anos e subvenção quilométrica de nove contos de réis ou a garantia de juros de 7%, sobre o capital que fosse efetivamente empregado, não excedendo a mil contos o máximo, passando, ao final do prazo, ao domínio da província a estrada e seus acessórios. (6) 

Alguns estudos foram realizados e logo depois, em 1883, uma lei do governo de Minas Gerais determinou que o entroncamento da estrada de ferro de Caxambu fosse nas imediações da ponte de Soledade, e que a garantia de juros a ela concedida não se tornaria efetiva caso não fosse dado cumprimento a essa lei. (7) Mas tudo isso só estava no papel, não sendo realizadas as obras, mesmo porque o trem também não havia chegado ao povoado de Soledade, o que só aconteceu no ano seguinte, quando foi inaugurado o ramal da E.F. Minas & Rio, chegando até ali.

Estação de Soledade de Minas
O ano seguinte foi importante para Caxambu, porque surgiram dois decisivos personagens para a vinda do trem: o médico Antonino Polycarpo de Meirelles Enout, e o engenheiro Paulo Ferreira Alves. O Dr. Enout já clinicava em Caxambu e morava próximo a Baependi numa grande propriedade rural onde, dentre outras lavouras, dedicava-se ao cultivo de uvas. Para ele, a estrada de ferro seria importante para transportar a sua produção com mais rapidez e segurança. Já o Dr. Paulo Alves, depois de formado, exerceu a função de engenheiro civil na Estrada de Ferro Minas & Rio, rede ferroviária esta que seria posteriormente incorporada à D. Pedro II.

Foi exatamente quando estava no exercício dessa função que seria contratado pelo governo provincial de Minas Gerais para, juntamente com o Dr. Enout, dar início à construção de um “tramway” de bitola de sessenta centímetros, que partindo do ponto mais conveniente da Estrada de Ferro Minas & Rio, passando pelas águas de Caxambu, terminasse na cidade de Baependi. (8) Esse privilégio seria concedido por 40 anos; ao final desse prazo o “tramway’ (um trenzinho que servia para o transporte de cargas e, nos domingos e feriados, a ele era atrelado um carro de passeio) com o todo o seu material fixo e rodante passaria a ser propriedade da província. Também na mesma lei estipulava-se que os referidos contratados estariam isentos do pagamento de direitos para todo material que importassem na província, para a construção e o tráfego do “tramway”, e autorizados a fazerem desapropriações de terrenos e benfeitorias que fossem necessárias à construção da linha férrea. (9)

O Dr. Paulo Alves possuía grande experiência no ramo ferroviário, pois no ano de 1888 ele fora contemplado com um contrato com o governo provincial do Rio de Janeiro para a construção de uma ferrovia que ligasse Angra dos Reis à Grota Grande, na divisa com São Paulo, empreitada que não se concluiria, haja vista as implicações políticas que passaram a existir com a proclamação da Re- pública no Brasil.

Estação de Baependi
Obstáculos, no entanto, também se opuseram à chegada do trem a Caxambu: em Ouro Preto, na época capital da província de Minas Gerais, conseguiram ajustar a concessão; porém, um impasse surgiria no Rio de Janeiro, pois ali o conselheiro Luiz Matheus Maylask (10) já havia obtido concessão do governo imperial para rasgar um via férrea que, partindo do Rio de Janeiro, subiria a Serra da Mantiqueira, atravessaria Bom Jardim de Minas, passaria por Aiuruoca, Baependi, Caxambu, Soledade, Silvestre Ferraz (atual Carmo de Minas), Cristina, Itajubá, Ouro Fino e Eleutério, encontrando a Estrada de Ferro Mogiana, já no estado de São Paulo.

De que forma, então, resolveu-se a questão? Com o conselheiro Maylask abrindo mão do contrato em troca do pagamento de 200 mil réis em títulos da Estrada de Ferro Sapucaí (assim denominada a nova empreitada) e que, finalmente, sairia do papel.

Além da significativa contribuição que deram para Caxambu em termos de ligação ferroviária, também por influência do Dr. Enout, a recém implantada câmara municipal contrataria, em caráter provisório, o Dr. Paulo Alves para a organização de uma empresa, à parte daquela já existente, para a instalação de outro balneário no Parque das Águas, introduzindo neste e no primeiro alguns melhoramentos. Infelizmente foram em vão os esforços, considerando que o Dr. Paulo Alves fora convidado para exercer o cargo de prefeito de Niterói (o primeiro no cargo) e também porque a Empresa das Águas Minerais de Caxambu seria encampada pelo governo de Minas Gerais em 18 de abril de 1904, quando se encerrou o contrato do conselheiro Mayrink naquela estância.(11)

Foi, portanto, exatamente no dia 15 de março de 1891 que o trem chegou pela primeira vez em Caxambu, pelos trilhos da Viação Férrea Sapucaí. A primeira estação ferroviária foi construída nesse mesmo ano e demolida em 1948. Posteriormente, fizeram uma nova e depois a que hoje ali se encontra. Mas, infelizmente, o trem parou de correr em Caxambu aí por volta de 1972. 


Entendendo a malha ferroviária do sul de Minas Gerais 


Dona de uma das maiores extensões ferroviárias do Brasil, a Rede Mineira de Viação foi aquela que agregou, em sua formação, praticamente todas as demais ferrovias do sul das Minas Gerais. Dentre elas a Companhia Estrada de Ferro Oeste de Minas, que foi a primeira a ser organizada, em 2 de fevereiro de 1878, sendo oficialmente inaugurada em 28 de agosto de 1881, entre Sítio (hoje Antônio Carlos), Tiradentes e São João Del Rey. 


Oeste de Minas 

A Minas & Rio em Cruzeiro

A par de correrem os trilhos da Oeste pelo centro-norte de Minas, havia planos de descer até Barra Mansa, na linha da Central do Brasil e atingir o mar através de Angra dos Reis. Partindo de Lavras (1895), atingiu Paulo Freitas em 1898; Traituba, em 1903; São Vicente, em 1912; Turvo (hoje Andrelândia), em 1914; e ainda nesse mesmo ano chegava em Arantes (hoje Arantina). A ideia era atingir Bom Jardim de Minas na linha da Sapucaí e, cruzando-a, atingir Barra Mansa

A Oeste, que tinha interesse também no entroncamento com a Sapucaí, estendeu o ramal de Turvo a Livramento (hoje Liberdade) na linha da Sapucaí, de curta duração, pois por Bom Jardim de Minas também se alcançava a Sapucaí. Resolvidos os grandes problemas topográficos da serra da Mantiqueira, a descida por Bom Jardim ficou sendo apenas um ramal e, partindo de Arantes pela direita, a linha desceu cruzando a Sapucaí, em Rutilo, e se encontrava com os trilhos que vinham de Barra Mansa. A ligação só foi efetivada em 25 de maio de 1915.


Locomotiva da Oeste de Minas
Antes de ser constituída a Rede Mineira de Viação – RMV, que encamparia a Oeste, esta passou por várias administrações, tendo sido, inclusive, administrada por um banco alemão durante um bom período. Passou ao domínio do governo federal em 1903, devido a falências e dívidas. Mas o ponto histórico importante da Oeste de Minas é que, entre as ferrovias que constituíram a RMV (Rede Mineira de Viação), ela foi a mais antiga. 

Muitos traçados e ramais ainda foram projetados na Oeste e não foram concluídos, ora por falta de recursos financeiros, ora por estudos mostrando outros traçados melhores.



Rede Sul-Mineira


A Muzambinho


Em sua constituição, a Rede Sul-Mineira arregimentou a Sapucaí, a Muzambinho e a Minas & Rio. Nas linhas da Muzambinho foi construído o ramal de Três Pontas. Aí surgiu a E. F. Trespontana como uma ferrovia particular com 20 km de extensão, com o km zero na Estação de Espera (da E. F. Muzambinho) e Três Pontas como ponto final. Já em 1930, o tráfego na região era todo da Sul- Mineira, uma vez que o estado de Minas Gerais comprara o ramal em 1928.

A segunda ferrovia a ser construída no sul de Minas foi a E. F. Muzambinho, que, como o nome indica, iniciava suas linhas em Três Corações e atingia Muzambinho, isso em 1892. Na verdade, a E. F. Muzambinho deveria atingir São Joaquim da Serra Negra (município de Alfenas), e foi construída em cima de uma concessão da Minas & Rio, cujos proprietários não demonstraram interesse inicial por esse trecho. O primeiro traçado da Muzambinho foi inaugurado em 1892, partindo de Três Corações, passando por Varginha. Contudo, também teve vida efêmera, pois em 1899 foi encampada pelo governo de Minas e em 1908 foi incorporada à E. F. Minas & Rio.
Esta ferrovia ficou, posteriormente, com a concessão da Minas & Rio, o que aconteceu também com o ramal para as cidades de Cambuquira, Lambari e Campanha.



Minas & Rio


Quando a Estrada de Ferro D. Pedro II alcançou a estação de Lavrinhas, em 1874, o governo da província de Minas Gerais editou a Lei no 2.062, de 4 de outubro, autorizando a construção de uma estrada de ferro que, partindo de Cruzeiro, se dirigisse à confluência dos rios Verde e Sapucaí, dando origem à Estrada de Ferro Rio Verde, com ponto terminal em Três Corações.
Para promover a sua construção, organizou-se em Londres, nesse mes- mo ano, a companhia The Minas and Rio Railway, sendo todo o trecho da estra- da compreendido entre Cruzeiro e Três Corações inaugurado em 14 de junho de 1884; até 1902 foi administrada pelos ingleses, ocasião em que foi passada à União. Prosseguindo, essa estrada de ferro atingiu seu ponto terminal em Juréia (antes chamada de Tuiuti) em 28 de agosto de 1908, onde encontrou os trilhos da Companhia Estrada de Ferro Mogiana.



E. F. Sapucaí


Inauguração da Machadense
A Companhia de Viação Férrea Sapucaí surgiu em 15 de março de 1891, ligando Caxambu a Cristina, com ponto principal na estação de Soledade de Minas, integrante do ramal da Estrada de Ferro Minas & Rio, chegando em 1897 à estação Sapucaí, seu ponto terminal. Soledade passou a ser um centro de um dos maiores entroncamentos ferroviários da região sul de Minas.
A Estrada de Ferro Sapucaí visava, em síntese, a ligação entre a Estrada de Ferro Minas & Rio e a divisa com São Paulo, no município de Ouro Fino, onde se conectaria à Mogiana. A Sapucaí obteve outras concessões de ferrovias que não saíram do papel. Em 1897, a linha da Sapucaí, conforme anteriormente apontado, vinda de Barra Mansa, chegava a Bom Jardim de Minas.

A Sapucaí depois agregou as linhas da E. F. Santa Isabel do Rio Preto, inaugurada em 25 de maio de 1885, ligando esta última à cidade de Barra do Piraí, na então província do Rio de Janeiro. Essa incorporação deu-se em 1889, além da E. F. Santana, quando então atingiu 595 quilômetros de extensão, pas- sando a denominar-se Viação Férrea Sapucaí.
Em 1910, a Viação Férrea Sapucaí incorporou a Estrada de Ferro Minas & Rio e alterou seu nome para Companhia de Estradas de Ferro Federais Brasileiras Rede Sul Mineira.
Nesse mesmo traçado, havia a E. F. Machadense, também de iniciativa privada, com 41 km12 de extensão, com ponto inicial na estação de Alfenas, e também em 1928 comprada pelo governo de Minas.


Rede Mineira de Viação


A Estrada de Ferro Oeste de Minas que era administrada pela União desde 1902 foi arrendada ao estado de Minas Gerais no dia 24 de janeiro de 1931, quando se lavrou contrato estipulando que a Oeste seria explorada técnica e financeiramente em comum com a Estrada de Ferro Paracatu e a Rede de Viação Sul Mineira, sob a denominação de Rede Mineira de Viação, que por sua vez era formada por várias outras ferrovias, tais como a Estrada de Ferro Minas & Rio, a Estrada de Ferro Sapucaí, a Estrada de Ferro Muzambinho e a Estrada de Ferro Machadense.

Uma ferrovia peculiar foi a Estrada de Ferro Paracatu, que apesar do nome, nunca chegou à cidade homônima, onde deveria ser o ponto terminal. Teve pouca projeção histórica e era economicamente inviável. As oficinas fica- vam em Velho da Taipa, onde a estrada se entroncava com a E. F. Oeste de Mi- nas, e ainda um ramal para a cidade de Pitangui. A ferrovia planejava ligar Belo Horizonte a Paracatu; teria o ponto inicial em Azurita (estação da Oeste de Mi- nas a 78 km de Belo Horizonte).
Durante os primeiros anos, a Rede Mineira de Viação ficou dividida em duas estradas de ferro. A Oeste de Minas continuou sendo Estrada de Ferro Oeste de Minas – RMV Oeste, e a Rede Sul Mineira passou a ser denominada Estrada de Ferro Sul de Minas – RMV Sul. Contudo, tudo leva a crer, compulsando-se documentos e fotografias da época, que o sistema foi unificado por volta do início da década de 1940.


Os tempos modernos




Em 1938 as ferrovias Estrada de Ferro Trespontana e Estrada de Ferro Machadense, pertencentes ao estado de Minas Gerais, foram incorporadas à Rede Mineira de Viação. Também em alguns pontos da Muzambinho corriam os trilhos da E. F. São Gonçalo, que foi construída pelo governo de Minas. Era administrada e operada pela Rede Sul-Mineira. Com 30 km de extensão, iniciava-se em Campanha e utilizava o material rodante da Muzambinho.

Em 1951 Juscelino Kubitschek, iniciando seu mandato como governa- dor de Minas Gerais, deu uma conotação mais acentuada à construção de rodovi- as. A base do transporte do estado, até então, era realizada pela Rede Mineira de Viação, que, apesar dos 3.900 km de extensão e dos 3,5 milhões de passageiros transportados em 1952, era altamente deficitária. O governo estadual não tinha interesse em mantê-la, apesar de algumas iniciativas para a modernização da ferrovia. Juscelino, antes mesmo de tomar posse no governo, fechara, em acordo com Getúlio Vargas, a devolução da RMV à União, o que foi concretizado em agosto de 1953.
Depois de passados cinco anos da devolução da RMV à União, seria criada a Rede Ferroviária Federal S. A., já no governo de Juscelino Kubitschek como presidente da República, sendo a mais extensa do sistema ferroviário brasileiro, chegando a 3.882 km.
Em 1965 a Rede Mineira de Viação, juntamente com a E. F. Goiás e com a E. F. Bahia e Minas, transformou-se na Viação Férrea Centro-Oeste e, em 1969, na 5a Divisão Centro-Oeste da RFFSA, posteriormente Superintendência Regional 2 na década de 1970, com sede em Belo Horizonte, mantendo-se como tal até 1996 quando, dentro do programa de desestatização da RFFSA, iniciou-se a concessão da FCA – Ferrovia Centro-Atlântica.


Os caminhos da “Ruim Mais Vai” em Caxambu


Inauguração da Estação de Caxambu, 1926
Nos tempos em que os trens da Rede Mineira de Viação circulavam em grande parte do território mineiro, o logotipo da mesma – RMV – dava margem a brincadeiras, passando a significar “Ruim Mas Vai!” No início os trens que chegaram a Caxambu pertenciam à Viação Férrea Sapucaí e à Estrada de Ferro Minas & Rio. Depois, em 1910, houve a fusão dessas empresas e acabou surgindo a Rede de Viação Sul-Mineira e esta, em 1931, passou a se chamar Rede Mineira de Viação, que operou em Caxambu de 1931 a 1965 e, por fim, a Viação Férrea Centro-Oeste, de 1965 a 1972.

O trem de Caxambu tinha dois destinos: um até Barra do Piraí e outro descia até Cruzeiro, vindo de Baependi. Muita gente reclamava dos atrasos, da limpeza mesmo dos trens; os funcionários da estrada de ferro reclamavam da falta de pagamentos, mas era o que se tinha de melhor como transporte na ocasião, pois a estrada de rodagem asfaltada como hoje conhecemos só surgiria no final dos anos 1950.
Os trens de passageiros da RMV circularam até 1942 entre Barra do Piraí e Passa Três; até 1961 entre Santa Rita de Jacutinga e Barra do Piraí; até 1970 entre Bom Jardim e Santa Rita; até 1972 entre Soledade e Aiuruoca e até 1977 entre Aiuruoca e Bom Jardim.

“Ruim, mas vai”


Último prédio da Estação
As redes ferroviárias que serviram Caxambu foram as seguintes: Viação Férrea Sapucaí (1891 a 1910); Rede Sul Mineira (1910 a 1931); Rede Mineira de Viação (1931 a 1965) e Viação Férrea Centro Oeste (1965 a 1972).

Notas
1. Guia para uma viagem às águas medicinais de Caxambu, província de Minas Gerais, acompanhada de uma breve notícia sobre a povoação e um esboço histórico das mesmas águas.

2. Hoje é a cidade de Itamonte.
3. O antigo Registro do Picu foi deslocado mais tarde para a divisa entre
Minas Gerais e Rio de Janeiro, no local denominado de Garganta do
Registro, onde existiu um posto fiscal.
4. Com a proclamação da República teve a sua denominação mudada para
Estrada de Ferro Central do Brasil.
5. A Estrada de Ferro Rio Verde foi uma concessão dada pelo governo imperial, em 1875, a José Vieira Couto de Magalhães e ao Visconde de Mauá e em maio de 1876 foi aceito o projeto de entroncamento com a Estrada de Ferro D. Pedro II na altura de Cruzeiro, tendo a linha como término a estação de Três Corações. Contudo, logo passou a denominar- se E. F. Minas & Rio, inaugurada em 14 de junho de 1884.
6. Arquivo Público de Minas Gerais. Coleção das leis do império e da república.
7. Idem.
8. Idem.
9. Idem.
10. Húngaro de nascimento, o conselheiro chegou a Sorocaba em 1866 para trabalhar numa fábrica de algodão e em 1871, juntamente com um sócio – Roberto Dias Baptista – fundou a Companhia Estrada de Ferro, mais tarde Estrada de Ferro Sorocabana, do qual seria o primeiro dirigente; foi demitido em assembleia geral do ano de 1880.
11. O conselheiro Mayrink administrou de 1890 a 1904 a Empresa das Águas de Caxambu e foi importante figura no desenvolvimento da cidade que se emancipou em 16 de setembro de 1901, contando, inclusive, com sua influência junto ao governo estadual. Antes, fora administrador da E. F. Sorocabana, tendo substituído o conselheiro Maylask na condução daquela ferrovia, em 1880, a quem acusou de gestão ilegal, malversação de fundos e desfalque.
12. Vejamos interessantes relatos do grande historiador Capistrano de Abreu em cartas ao seu particular amigo João Lúcio de Azevedo, falando como se chegava a Machado antes do trem, em 1920:
 “Hoje parti de Caxambu, amanhã chegarei a Pontalete, na confluência do Verde com o Sapucaí, donde uma linha de automóveis me levará a Machado, à hora de jantar com minha filha. Visita de médico, tal como as do marido, para matar e reviver saudades”. Em outra missiva dizia que: “Pretendo tomar o trem para visitar minha filha no Machado. Viagem bem aborrecida, que se podia fazer num dia, mas toma dois e no segundo ainda exige 50 quilômetros de automóvel agem, ele comenta: "Este (o automóvel) anda cerca de 50 quilômetros, faz-se quase todo no escuro, e o caminho, salvo umas passagens chama- das mata-burro, é regular. O trecho ferroviário é cerca de 10 quilômetros mais que daqui (Rio) a São Paulo, mas pede quarenta horas, por causa de uma interrupção de mais de 20, já na bacia do rio Verde, aonde é forçado a dormir".

Texto publicado na Revista ASBRAP n°21
Agradecimentos
Nossos agradecimentos ao Prof. Paulo Roberto Paranhos pela autorizacao da publicação do texto no Blog da Família Ayres.
Poesia: Eustaquio Gorgonne, Soledade de Minas