sexta-feira, 13 de maio de 2016

Samuel Ayres de Lima, o sobrevivente. De volta à África

Samuel Ayres de Lima, na cerimonia de entrega da medalha
conferidas pela ONU  pela participação do Brasil na missão
 Congo,  Africa, em 4 de junho 19622.
O sobrevivente

 
Monsenhor José Joao de Deus
Samuel Ayres de Lima, nascido a 5 de maio de 1918, filho de José Ayres de Lima, Trancador-filho e Gervásia Maria da Conceição.
Contava ele numa de nossas conversas telefônicas, que tinha nascido muito fraco, raquítico mesmo e por isso sua mãe, não acreditava que iria sobreviver... Não sem razão, vó Gervásia perdeu 6 filhos em 16 vezes que ficou grávida. José, em 1900, de "mal do umbigo", Joaquim, em 1901, do "mal dos recém nascidos", Anna, em 1902, de pneumonia dupla, Maria, em 1905, igualmente falecida de pneumonia dupla e Stella, batizada como Esther, em 1921, de disenteria. Então não havia razões  mesmo para que vó Gervásia acreditasse que Samuel, o filho caçula sobrevisse. Mas sobreviveu!  Esperaram quase um ano para fazer o seu batizado, que foi realizado  em 7  de março de 1919, na Igreja Nossa Senhora dos Remédios, em Caxambu. Foram padrinhos Juscelino Vieira Machado e Maria Vieira Machado, abençoado pelo Monsenhor José João de Deus.




Pelo lado paterno Samuel era neto de 1° grau de José Fernandes Ayres (1835-1897)  ,Trançador-pai e Maria de Souza Lima (1841-1906) e bisneto de João José de Souza Lima (1798-1875) e Joana Thereza Ribeiro de Lima (1806-1860) e constaram do sensu de 1839 (vide abaixo) da cidade de Pouso Alto e que por volta de 1850,  se mudaram para o Chapeo, hoje bairro da cidade de Baependi. Até a esta data a avó de Samuel, Maria de Souza Lima  ainda não  havia nascido.


Alguns registros apontam que a família tinha como vizinhos de porteira a família de  João  Ferreira Simões, (1835-1919), futuro proprietário das escravas Justinianna Maria da Conceição (1843-1914) a Nana como era conhecida e Sabina Maria da Conceição (1865-?), respectivamente bisavó e avó  pelo lado  materno de Samuel e assim as famílias ficaram eternamente entrelaçadas...

Seus ascendentes e descendentes



De lapidador a sargento

Samuel saiu muito cedo para a vida. Sua carreira no mundo do trabalho iniciou aos 14 anos, partindo de Caxambu em ao direção Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar  no laboratório de propriedade de um conterrâneo de Cruzília, ligados à família dos Juca Leite. Depois foi trabalhar numa fábrica de lapidação de pedras preciosas. Aos domingos ainda "pegada uma escada colocava nas costas e ia fazer biscates como eletricista", contou a nossa biblioteca familiar, Célia de Lima. Eletricidade era o seu robby e talvez por isso acabou mais tarde se especializando em mecânica de avião. Ele ainda Morava em Cascadura, quando se inscreveu na aeronáutica,  iniciando posteriormente sua carreira militar na Força Aérea Brasileira.

De volta para a África

Samuel Ayres de Lima em contato com a população local no Congo,
 na Missão  de Paz da ONU,
Organização das Nações Unidas, em 1962
E ironias do destino Samuel, ele, neto e bisneto de escravas volta ao continente de origem de seus ancestrais, à África, em missão de paz no Congo, bem próximo de onde partiam os navios negreiros em direção ao Brasil.
Entre os séculos XVI até meados do século XIX vieram cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças  para o Brasil. A contabilidade não fecha. Os registros foram queimados para que evitassem que eles pudessem pedir indenização posterior. Foram muito mais. Os comerciantes portugueses de escravos vendiam suas "mercadorias" no Brasil. O transporte  era feito nos porões dos navios em condições desumanas. Os que sobreviveram eram vendidos e iam trabalhar nas fazendas de açúcar ou nas minas. As mulheres eram  empregadas no trabalho doméstico. Não sabemos ao certo como a nossa bisavó /trisavó Justinianna chegou ao Brasil. Ela continua sendo a mais antiga ancestral da Família Ayres pelo lado materno de vó Gervásia, nascida por volta de  1843 entre o Brasil e a África.

Mas o que mesmo aconteceu no Congo?

Em 1870 os europeus iniciaram acorrida para lotear a África. Se não bastasse ter tomado os seus filhos como escravos, agora estavam atras dos territórios e suas riquezas minerais.  Muitos interesses estavam em jogo. Enquanto os portugueses achavam que a foz do Rio Congo era uma área para comércio de escravos que lhes pertencia, a Bélgica defendia o seu fim. Assim criaram um estado independente  e Leopoldo II, da Bélgica como monarca. Ah os reis... 

Com  2a Guerra Mundial, houve um aumento da necessidade de produção de minerais  e la estava o Congo de novo com suas minas.  As bombas de Iroshima  e Nagasaki foram feitas com urânio do Congo! Sua posição estratégica, no centro da África, acirrou ainda mais o interresse e as disputas das potências econômicas pelos seus territórios.

Enquanto isso, a população sofria sob o regime autocrático e paternalista. O sistema educacional organizado pela colónia não abria perspectivas  para os jovens, nem formava lideranças políticas para ao futuro. As lutas pela independência chacoalhavam a Africa. A vizinha Argélia  rompeu seus laços com a França  em 1954, traumaticamente.  O Congo Belga seria o próximo a fazer o mesmo.

Nas vésperas da independência os postos chaves ainda eram  ocupados por belgas. Patrice Lumumba, líder nacionalista congolês, havia dito  em 1957 que: "Quando tivermos suficientes doutores, engenheiros, técnicos, geólogos, administradores e magistrados, aí sim, poderemos pedir nossa independência". A colônia entregou o país  aos congoleses,  no dia 30 de junho de 1960, um país de 14 milhões de habitantes, mais de 200 tribos diferentes, sem unidade nacional, sem experiência administrativa. Resultado: caos. Em poucas semanas de independência a estrutura administrativa do Congo desapareceu, deixando o país sem autoridade. Mais uma vez, agora a ONU clamou por uma intervenção, a intervenção  para a paz e assim foi Samuel Ayres de Lima parar no Congo.

A missão possível

A Força Aérea Brasileira enviou para a República do Congo entre 1960 e 1964  um contingente de 69 oficiais, 110 suboficiais, sargentos e cabos, que tinham o quartel general na cidade de Leopoldville, atual Kinshasa. Eles se destacaram na operacao e manutenção das aeronaves C-47, realizando milhares de horas de voo em condições extremamente difíceis.

Os pilotos brasileiros e consequente oficiais, como o sargento-mecânico Ayres, (foto, primeiro à esquerda) foram alocados no 1° Esquadrão, tendo comandante o Tenente Coronel Indiano (foto).  A babel era grande. O trabalho conjunto com oficiais de vários países como Canada, Sri Lanka, Dinamarca, Irlanda, Noruega, Argentina, Egito, Grécia só para citar alguns,  falando diversas línguas necessitou que os oficiais brasileiros aprendessem o inglês e francês e com certeza para Samuel uma experiência única. Me lembro que do nosso último encontro ele arranhava algumas palavras em inglês.

A missão transportava na maioria material logístico, em apoio das unidades militares, mas também tomavam parte na evacuação da população branca, no transporte de mantimentos para os refugiados e missões de reconhecimento aéreo, com eventual lançamento de folhetins. As tropas permaneceram uma média 8 meses no Congo. Samuel estava no 3° contingente que permaneceu no Congo de Janeiro a setembro de 1962.

Guerra e paz

Residencia dos italianos assassinados por
congoleses, registrado em  20/07/ 1961
As operações eram cercadas de risco e algumas verdadeiras missões de guerra. Uma operação de paz definida pela ONU para ser vitoriosa, não pode representar ameaça para as partes envolvidas, nem ser percebida como tal. Ha de ser exercida com imparcialidade, sem que seus participantes sejam vistos como partes no conflito e isto sem o uso da força de armas. Difícil tarefa. As operações tinham o papel de contribuem para diluir tensões políticas e foi empregada em diversas situações. Mas essa "imparcialidade" nem sempre foi entendida pelas partes conflitantes e assim os soldados da paz eram confundidos com inimigos como aconteceu com 13 militares italianos, que foram mortos na cidade de Kindu pelos congoleses, em novembro de 1961, pouco antes da chegada de Samuel. Os soldados ainda encontraram marcas do massacre nesta casa...


Entre a vida e a vida
O dramático resgate

Sargento Oficial Ayres em seu elemento
Congo, África, 1962
A operação mais dramática e arriscada vivida pelos aviadores brasileiros, foi a evacuação de um grupo de religiosos, feito por helicópteros. Cenas cinematográficas: Pane em um dos helicópteros de resgate. Os nativos congeles iam se aproximando do local, enquanto dos mecânicos tentavam sanar os problemas técnicos. No último minuto outro helicóptero consegue descer e resgatar a tripulação e os civis  que imediatamente alça voo. Segundos depois o helicóptero em pane foi destruído e queimado pelos congoleses. O "triller" durou apenas 15 minutos, 15 longos minutos entre a vida e a vida.

As "boas"... piscinas



Nem tudo era guerra. Nas horas de folga Samuel pode fazer registros da paisagem no clube local. Na década de 60 o vocabulário para as "belas formas" soava diferente e Samuel, fazendo uso da gíria do seu tempo lascou: "Aqui no Congo também tem "Boas"!!! "...  Piscinas ele quis dizer.

Querida Carmem. Toda Roma jamais me proporcionara tanta felicidade  como o momento de poder abraçar a todos

Não preciso tecer mais comentários. Com esta frase, escrita no verso do cartão postal acima enviado de Roma, em 14 de agosto de 1962 termina  sua missão. Samuel Ayres de Lima se despede de Roma. 

O pé de chumbo no Projeto Rondom

De volta ao Brasil a vida seguiu. Após cumpridos o tempo de trabalho, Samuel ia em direção à sua aposendentadoria e... Mas vocês acham que o tio Samuel se aposentou? Que nada! Ele era daqueles que amava o que fazia. Trabalhou de 30 anos no posto de Sargento Oficial  servindo a  FAB como coordenador dos mecânicos de avião e mais 20 anos no  Projeto Rondon, em função administrativa, na Base Aérea de Irere, em Natal. Conhecido por  "pé de chumbo" por sua  honestidade, correção, aliás uma característica dos filhos de Gervásia Maria e José Ayres, chegava ser mesmo um "chato", contou a tia Célia. 

Operacao Zero

E para quem não sabe, o nome Projeto Rondon foi dado em homenagem ao Marechal Candido Mariano da Silva Rondon, bandeirante do século XX que fazia expedições pelo sertão do país, estendendo linhas telegráficas. O projeto foi criado em 11 de julho de 1967 durante a ditadura militar, e tinha como lema "integrar para não entregar", expressando o ideário desenvolvimentista, articulado à doutrina de segurança nacional. Promovia atividades de extensão universitária levando estudantes voluntários às comunidades carentes e isoladas do interior do pais, do norte e nordeste, onde participavam de atividades de caráter assistencial, organizadas pelo Governo e levando a juventude universitária a conhecer de perto a realidade brasileira. 
Entre 1967 até 1989, quando foi extinto o projeto envolveu mais de 370 mil estudantes e professores de todas as regiões do pais. A ideia surgiu em 1966, na Escola de Comando e Estado Maior do Exército, durante a realização de um trabalho de sociologia intitulado "O militar e a sociedade brasileira". A primeira operação do Projeto Rondon, foi  denominada "Operação Zero", teve inicio em 11 de julho de 1967, quando trinta estudantes e dois professores partiram do Rio de janeiro para Rondônia a bordo de uma aeronave C 47, cedida pelo antigo Ministério do Interior, daquele mesmo modelo usado na participação do Brasil na operação de paz da ONU e que com certeza Samuel conhecia cada parafuso da aeronave. A equipe permanecia na área 28 dias, realizando trabalhos de levantamento, pesquisa e assistência médica. No ano seguinte, o projeto contou com a participação de 648 estudantes e foi expandindo para outras áreas.

Em 1970 o Projeto Rondon foi organizado como órgão autônomo da administração e em 1975, transformado em Fundação Projeto Rondon.  As atividades inicialmente desenvolvias apenas durante férias escolares, evoluíram com a criação do campos avançado, dos centro de atuação permanentes e de operações regionais especiais. O projeto passou por novas orientações ao longo dos anos e hoje esta orientado pelos princípios da democracia e responsabilidade social, agora sob a coordenação do Ministério da Defesa trabalhando emparceira com os ministérios da educação, desenvolvimento social, saúde, meio ambiente e continua com o apoio imprescindível das Forças  Armadas no suporte logístico e segurança, necessários às operações.

Voltemos à Samuel. Nos últimos anos de sua definitiva aposentadoria vivia uma vida pacata cercado por  seus familiares, Carmen, a tia Carmem sua esposa,  seu filho Alexandre, sua nora Sandra e seus dois netos, Maria e Alexandro. Ainda do alto de seus 95 anos cumpria a rotina de buscar pão cedinho na padaria. 

Hoje é um dia bom para descansar...

Internado em conseqüência de uma forte crise renal, recebia visitas diárias de seus ente queridos. Alexandre seu filho caçula fazia uma de suas visitas diárias, quando no dia ele lhe disse pensativo  olhando para o céu:  "Hoje é um bom dia para descansar... "
Samuel  Ayres de Lima faleceu de uma parada cardíaca, poucas horas depois da visita, em conseqüência da falência múltipla dos órgãos, no Rio de Janeiro, aos 95 anos.

Fonte: 
A Foça  Aérea Brasileira no Congo (sem autoria)
IBGE
Wikipédia
Fotos: Agradecimentos à neta Maria Ayres pelo envio do arquivo pessoal de fotos de Samuel Ayres de Lima para o Blog da Família Ayres.

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