domingo, 31 de julho de 2016

Ramiro Rodrigues Freitas, o jardineiro do Parque das Águas


O parque tem qualquer coisa de paradisíaco. É obra da mão do homem. Mas parece antes obra de Jehovah portentoso, assim escrevia o Jornal "O Patriota", em 1916 sobre o Parque da cidade de Caxambu.

Medicina entre flores

O centro da cidade de Caxambu é hoje coberto de cimento e asfalto. A poesia dos  casarões foi substituída por horrendos arranha-céus. Mas, com sorte e um olhar atento, esse passado ainda pode ser visto em algumas poucas casas, hotéis, sobreviventes da sanha da especulação imobiliária. 

Porém, não foi sempre assim. Caxambu era muito diferente e chegou a ser chamada de "medicina entre flores", se referindo às suas águas que curavam, fontes circundadas por um jardim paradisíaco. Este paraíso abrigava dois jardins : o jardim real, de muitas flores, alamedas bucólicas, árvores centenárias, o outro o jardim  modelado em argamassa.

O velho  Francisco da Silva Reis, o Chico Cascateiro

Francisco José da Silva Reis, em Passa Quatro (1)
Dois portugueses e um destino singular:   Francisco da Silva Reis, conhecido como Chico Cascateiro e  Ramiro Rodrigues de Freitas. Ambos chegaram ao Brasil clandestinamente vindos de Portugal e tiveram participação ativa no paisagismo do Parque das Águas. Um como estucador e o outro como jardineiro. Eles não ganharam fortunas, nem escreveram seus nomes em livros de paisagistas importantes, mas estão intimamente ligados à história da cidade de Caxambu.

Vamos por partes. Francisco da Silva Reis, português, era artesão de profissão. Ao chegar no Sul de Minas já havia executado obras na cidade do Rio de Janeiro, como coretos e grutas. De estatura mediana, magro, claro, trajava calça de algodão, paletó e chapéu de feltro com abas caídas. Quando realizou suas obras na cidade de Cristina, era já um homem de relativa idade, e, segundo quem o conheceu, um... "rosto cadavérico". Ele tinha um hábito incomum, de ir passear na mata, certamente buscando inspiração para os modelos de sua criação. Numa feliz constatação observando bem os únicos registros  fotográficos, ambos feitos quando realizavam o seu trabalho  muito se assemelham: Chico Cascateiro na cidade de Passa Quatro. ambos de chapéu de abas largas na cabeça. Um com o balde de cimento e o outro com um regador nas mãos. (fotos)

O jovem  Ramiro Rodrigues de Freitas

Em contrapartida, o seu compatriota Ramiro Rodrigues de Freitas era ainda um adolescente quando aportou em terras mineiras. Segundo contam na família Ayres, ele veio clandestino num navio, com apenas 13 anos e foi criado  por uma família de turcos, história contada pelos membros da Família Freitas. A história tem grande possibilidade de ser verdadeira, pois Ramiro era um conhecedor da culinária oriental. O quibe era uma especialidade que ele fazia muito bem, uma tradição que foi passada para os filhos e netos.

Ramiro Rodrigues, em sua horta privada, na Rua Quintino Bocaiúva
Os jardins esquecidos

"Que linda está ficando a nossa praça 16 de setembro?
Já passaram por ali à noite?
Vale a pena. É um encanto."



Em 1912, no governo de Camilo Soares, foram iniciadas as reformas do jardim público na Praça 16 de setembro, no centro da Cidade.  O desenho original adaptado para o pequeno jardim era de Francisco da Silva Reis. As obras foram concluídas em 1918 (foto) e consumiram 7 anos de trabalho.  Só as testemunhas dos cartões postais da "Casa Levy" nos levam a este passado... Silva Reis, era considerado um simples "pedreiro" e nunca foi tratado como paisagista,  ou mesmo um artista talentoso, não tendo sido sequer mencionado na inauguração das obras, por aqueles que o empregaram para a realizar o trabalho. Houve, porém, uma inesperada citação do artista, escrita por Guilherme Nogueira de Andrade, secretário do então prefeito Camilo Soares, no Jornal de Caxambu de setembro de 1918.

E o que, óra, vaé pelo Parque, onde o primoroso artista se acha em via de concluir a série de maravilhas que, lá erige?
Alli, o espasso é mais amplo e nelle, a pujança de seu genio imitador desenvolveu expansivamente e em maior escala! 
Os grupos de assentos toscos, emitação de madeira, em diversos pontos, a graciosa choupana como abrigo da bomba de excuamento de águas pluviaes, e para maior realce a elegante e soberba cascata e respectivo lago, fazendo-se em ponto culminante para o enlevo, agreste, de veranistas que, em mages todos grupos, posem para as classicas e provebiaes photografia, dos que aqui passam as temporadas em pela villegiatura.
Em todos esses maravilhosos trabalhos de pura imitação da natureza e fina arte, ficará perpetuado o nome de Francisco da Silva Reis, o inimitável e prodigioso Cascateiro.

O jardim de flores

Falemos então agora de flores. Os olhares de quem visitava Caxambu em 1919 não deixavam de expressar o seu deslumbramento com o Parque e com a cidade: "graciosas casas, vivendas pintadas de delicadas cores, lindíssimo jardim, artisticamente delineando a bella cascata, lindos caramanchões e outros embelezamentos de graça encantadora". Assim descrevia o Jornal da Cidade de Caxambu, comentando os encantos da "hidrópolis".

Ainda, "O parque das Águas, com seus jardins maravilhosamente floridos, os pavilhões das fontes construídos sob o apuro da arte e o estabelecimento hydroterapico". Ou "O poético jardim do Parque, cortado graciosamente pelo ribeirão  Bengo (este revestido à cimento armado, com gradis e pontes ligando suas margens) se ostenta tudo como que orgulhoso de suas luxuriantes belezas!"

Muitos elogios, mas nenhuma palavra sobre os que dedicaram seu trabalho e suas vidas para embelezar e manter o que todos elogiavam.

O jardim de argamassa

Por muito tempo a obra de Cascateiro ficou incógnita, até que os fotógrafos descobriam-na como motivo para suas fotos. Ao procurar assento nos bancos de argamassa, os médicos, militares e madames não viam  os cipós contorcidos que emolduravam suas colunas e borboletas da noite ainda dormiam o seu sono entre as frestas de bambu em argamassa do caramanchão.

Informava o jornal  O Patriota de 1916: "Os seus jardins, os seus núcleos de arvoredos projetando sombras, os seus bancos, gothicos, aqui  ali esparsos... a original e bella cascata, tudo alli, denota esforço e prodigalidade superior parte de Empreza".

Ah, esforços e prodigalidade superior da "Empresa" escreveu o jornal, e não dos que neles trabalharam.

Em 1928 a revista mensal Caxambu, que tinha o objetivo de "fazer a propaganda das riquezas naturais da bella cidade que lhe emprestou o nome, reproduziu em suas páginas fotos de veranistas e grupos de veranistas, tendo como fundo bancos feitos pelo paisagista"*,


Não temos dúvidas de que Ramiro conheceu e  trabalhou  com Chico Cascateiro. No período em que Cascateiro  erigiu sua obra no Parque e na cidade, Ramiro era jardineiro lá empregado na "Empresa", chegando a ser o chefe da jardinagem. Aposentado, continuou dedicado ao que sempre fazia bem, trabalhar com a terra. Ele era requisitado para cuidar de outros jardins na cidade. Dentre eles, o jardim dos antigos proprietários do Hotel Glória. No quintal de sua residência, na antiga Rua Quintino Bacaiúva, tinham uma horta muito bem sortida, cuidada com a mesma dedicação que recebeu os jardins e as flores do Parque das Águas.

Os jardineiros lembrados

Das inúmeras publicações catalogadas e citadas no texto "Jardins esquecidos" pelo autor Eustaquio Gorgonne entre os anos de 1924 e 1977,  para  o Projeto "Chico Cascateiro" realizado em conjunto com Manoel da Mata Machado, nenhuma delas cita as obras de Chico Cascateiro, escrevem; publicações estas de autores ou que residiam em Caxambu, ou que nela fizeram inúmeras estações de água. E esta afirmação é por mim confirmada, pois em todos os locais onde procurei material iconográfico para ilustrar este texto achei somente uma dama, que  posou sentada no alto da Cascatinha (foto) no centro do Jardim de Caxambu em 1906.

E imaginem se as obras de cimento e argamassa, que hoje ainda podem ser vistas no Parque das Águas de Caxambu e em muitas outras cidades brasileiras foram esquecidas, o que dizer das efêmeras flores que cresciam no parque, cultivadas pelas mãos de vô Ramiro?

O Chico Cascateiro conseguiu deixar sua assinatura gravada em cimento, no banco da Cascatinha. Mas, como iria Ramiro de Freitas assinar o nome em uma flor ou gravar o nome em árvores? 

De Francisco da Silva Reis, o Chico Cascateiro não temos notícias de sua vida privada, nem  de quando ele deixou o Brasil, mas podemos falar de  Ramiro  Rodrigues de Freitas que deixou muitos  descendentes. Ele foi casado com Maria José de Lima Ayres, a tia-avó Mariquinha, filha de José Fernandes Ayres, o Trançador-pai  e foi pai de 12 filhos ainda criando e mais 2 crianças na casa solidária de vó Mariquinha, na rua Quintino Bocaiúva, onde o lema era: onde come 12, come 13, 14... 

Perguntas de um  trabalhador que lê 

Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão os nomes de reis:
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilonia várias vezes destruída
Quem a reconstruiu tantas vezes?
Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma esta cheia de arcos do triunfo:
Quem os ergueu?
Sobre quem triunfaram os Césares?
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não   levava sequer um cozinheiro?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
Tantas histórias.
Tantas questões.*

E depois de tanto "trabalho", entrevistas, visitas, bolos e cafés, o casal descansa na obra de Chico Cascateiro, no Parque das Águas de Caxambu.

Maria das Graças Pereira e Vander Pereira sentados no Jardim do Éden
de Chico Cascateiro. A eles os nossos agradecimentos.

Fonte
Jardins Esquecidos (A arte em argamassa na obra de Francisco da Silva Reis), 2004. Eustaquio Gorgonne de Oliveira.
(1) Foto do mesmo texto
Poema: Berthold Brecht*
Jornal:
O Patriota, Revisa de Caxambu,
Almanak Lemmert,
Revista Brasileira de Geografia, 1940,
Correção ortográfica: Angela Rabelo.

2 comentários:

  1. Amei! Amo história, amo a arte de bem escrever. Parabéns Solange Ayres. Tia Graça e Tio Vander, por imortalizar a história de nossos antepassados em prosa. versos e fotos. #amomuitotudoisso. Betinha

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  2. Que linda história, Solange Ayres. Obrigada por contá- la neste espaço.

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